Entrevista

‘Maconha é alvo de pânico moral recente e criminoso’

Lucas Zacari

09 de março de 2024(atualizado 12/03/2024 às 17h31)

Em entrevista ao ‘Nexo’, neurocientista Sidarta Ribeiro avalia cenário do uso medicinal e recreativo da cannabis e comenta julgamento no Supremo que pode descriminalizar porte para uso pessoal

O Nexo depende de você para financiar seu trabalho e seguir produzindo um jornalismo de qualidade, no qual se pode confiar.Conheça nossos planos de assinatura.Junte-se ao Nexo! Seu apoio é fundamental.
FOTO: Mariana Greif/Reuters - 17.06.2023Manifestantes a favor da descriminalização da maconha durante a Marcha da Maconha, em São Paulo. Pessoas com uma faixa escrita "Cannabis medicinal já", com desenhos de uma flor com cinco folhas. À frente da faixa, um homem cadeirante com um sinalizador de cor verde

Manifestantes a favor da descriminalização da maconha durante a Marcha da Maconha, em São Paulo

O julgamento do Supremo Tribunal Federal sobre a descriminalização do porte de maconha para consumo pessoal foi novamente adiado, depois do ministro Dias Toffoli solicitar um pedido de vista – mais tempo de análise – na quarta-feira (6). 

O placar provisório da votação, de 5 a 3, é favorável ao entendimento de que o artigo 28 da Lei de Drogas, que criminaliza o porte de maconha e deixa para as autoridades policiais e juízes a distinção entre um usuário e um traficante, é inconstitucional. 

Os três votos contrários foram dados por Cristiano Zanin, indicado por Luiz Inácio Lula da Silva ao tribunal, e André Mendonça e Kassio Nunes Marques, indicados por Jair Bolsonaro. Em seu voto, Mendonça citou estudos que mostram que o consumo da maconha traz malefícios para a saúde psicológica. O ministro disse ainda que ela traria mais riscos do que o cigarro. 

Para o neurocientista Sidarta Ribeiro, professor e um dos fundadores do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, essa é uma afirmação que não se sustenta. Segundo ele, a maconha tem uma série de benefícios para as pessoas, mas sofreu um processo de pânico moral a partir do século 20. 

Nesta entrevista ao Nexo, Ribeiro lembra de como surgiu o estigma da maconha na sociedade e avalia o atual cenário do uso medicinal e recreativo brasileiro da cannabis. 

Ao longo da história da humanidade, a maconha esteve presente em diferentes sociedades, tanto como um produto, mas também como uma forma de tratamento medicinal. Em que ponto dessa linha temporal começou a se proibir o uso da cannabis? E quais motivos levaram a essa proibição?

Sidarta Ribeiro É uma proibição recente. Ela começa a se construir no início do Século 20 e se generaliza a partir de 1937, depois reforçada na Convenção [Única sobre Entorpecentes], de 61, e em convenções subsequentes. Essa proibição queria criar um grande pânico moral em torno da maconha por raízes racistas e, também, por questões econômicas, sobretudo para tirar o cânhamo do mercado. 

E foi uma campanha de difamação muito bem sucedida, porque gerou um pânico moral e uma série de crenças falsas que são muito disseminadas pela população, inclusive atingindo o Supremo Tribunal Federal.

Em seu voto, o ministro André Mendonça citou estudos que apresentam que o uso da maconha poderia levar a problemas psicológicos, sendo apontada como mais maléfica que o cigarro. Com base nas evidências científicas atuais, essa afirmação se sustenta? Como a maconha age no corpo humano?

Sidarta Ribeiro O tabaco está ligado a muitos tipos de câncer, a maconha não. Não que o uso fumado dela seja isento de riscos, não é, mas não tem uma associação forte com vários tipos de câncer como é o caso do tabaco. A maconha causa muito menos dependência, em torno de 9% para maconha e em torno de 32% para nicotina. Então o voto do ministro Mendonça foi bastante terraplanista.

A maconha age no corpo humano através de receptores, proteínas que estão na membrana de neurônios e que são parte de um sistema que a gente chama de endocanabinoide, que é o sistema de sinalização através de canabinóides produzidos pelo próprio corpo. 

Os canabinóides produzidos pela planta, chamados de fitocanabinoides, são exógenos ao corpo, mas atuam através de um sistema que já está produzido pelo corpo e que tem uma série de funções muito importantes de regulação do equilíbrio metabólico, do equilíbrio hormonal e do equilíbrio entre diferentes comportamentos. Então a maconha regula apetite, regula sono, regula formação de memórias, resposta imune.

Não é à toa que a maconha tem tantas utilidades como remédio, tantos usos terapêuticos. É porque, de fato, ela atua sobre um sistema bastante complexo que a gente já tem. É um sistema antiquíssimo na vida animal, compartilhado por uma miríade de seres, de mamíferos, de aves, de vertebrados de maneira geral. 

Estamos falando de uma via metabólica fundamental, uma terapêutica ancestral e um pânico moral recente e criminoso, porque causa superencarceramento de pessoas faveladas e negras, causa discriminação, causa violência policial. Tudo isso está acoplado a uma profunda ignorância sobre o que é maconha e que é o sistema endocanabinoide.

O Congresso brasileiro espera o resultado do julgamento no STF para votar a PEC 45/2023, uma proposta de emenda à Constituição que quer proibir o porte e a posse de qualquer quantidade e tipo de droga. Como avalia o estado da discussão desse tema no Brasil na comparação com outros países?

Sidarta Ribeiro O Brasil está completamente atrasado nessa discussão. Essa proposta no Congresso, se viesse a ser aprovada, seria uma loucura, porque querem que digam o que é droga. Tudo o que está vendido nas farmácias e nos bares não é droga? É tudo droga. Então essa ideia de que as drogas ilícitas são do mal, são do demônio, e as drogas lícitas são do bem, são seguras, é uma ideia ou muito ingênua, ou cheia de conflito de interesse. Na verdade, é uma ideia desonesta.

Do Uruguai ao Canadá, uma boa parte dos Estados Unidos, a Alemanha acaba de passar a legalização, há muito tempo existem os clubes canábicos na Espanha. Argentina, Chile, Colômbia, México, todos na frente do Brasil. Israel, para citar um país que pessoas conservadoras dizem admirar tanto. 

Esses países não só compreendem a enorme importância terapêutica da maconha, mas avançaram na discussão. Alguns com mais papel do Estado, outros com mais papel do mercado, outros com mais parceria, outros com mais regulação. Mas avançaram no sentido de eliminar a guerra contra essa planta milenar, fruto da domesticação intencional de nossos ancestrais, que foi estigmatizada e demonizada para cumprir propósitos políticos e econômicos, nunca em prol da saúde pública.

Em seu livro ‘As flores do bem’, o senhor cita que o Brasil foi pioneiro nos estudos do uso medicinal da maconha, mas que as pesquisas não foram para frente. O que faltou para o país estar na vanguarda dessa área? Qual o quadro da pesquisa de cannabis no Brasil hoje?

Sidarta Ribeiro Eu digo que as pesquisas foram para frente apesar da proibição, apesar dos entraves. Eu conto casos de vários lugares do Brasil, da USP [Universidade de São Paulo] de Ribeirão Preto, da UFRGS, da Federal do Espírito Santo, em que pesquisadores tiveram que fazer coisas muito difíceis para simplesmente produzirem sua pesquisa. 

Um exemplo fundamental é o do professor Elisaldo Carlini, que foi o grande nome da pesquisa em cannabis do Brasil e um dos maiores do mundo, um pioneiro no estudo do uso da maconha e, em particular, do canabidiol para o controle de epilepsia. 

O Brasil tem, na verdade, muito protagonismo na pesquisa com canabinóides a despeito da proibição. O trágico é que é uma grande fronteira de inovação, de descoberta da pesquisa biomédica, na qual o Brasil está ficando para trás. Apesar de todos os avanços, sobretudo causados pelos pacientes, familiares de pacientes e suas associações, o Brasil continua com insegurança jurídica, ignorância e mentiras. 

A ponto de a gente ter um voto como esse do ministro Mendonça, claramente um voto contra fatos, informações que não resistem a uma checagem. Mesmo assim, ele é capaz de fazer um voto conservador, votar pelo status quo, por esse sistema que penaliza a pessoa periférica, negra, enquanto permite que a camada mais rica da população, sobretudo branca, continue a fazer uso do que queira, drogas lícitas ou ilícitas, e fazer essa grande confusão sobre o que é a droga. 

No final de 2023, o governo de São Paulo regulamentou uma lei que permite a distribuição de remédios à base de canabidiol diretamente pelo SUS. Quais os impactos da gratuidade desses remédios na vida de quem sofre com doenças tratáveis com a maconha? 

Sidarta Ribeiro É muito bom que isso tenha acontecido, mas do jeito que está sendo executado não faz jus ao que somos. O Brasil hoje importa todos os insumos para esse tipo de tratamento, é um importador de insumos farmacologicamente ativos de cannabis. 

O Brasil deveria estar produzindo tudo isso para o seu mercado interno e externo. Isso faz com que o sistema seja extremamente onerado, distribuir pelo SUS significa importar remédios caros. 

Tem que disponibilizar medicamento à base de cannabis no SUS, mas de outras maneiras. Seguindo o exemplo das associações de pacientes, empoderando a produção em pequena e média escala, trabalhando com variedades específicas. Para cada doença e cada paciente, um certo tipo de genética de planta, de extração e de formulação podem ser necessários. A cannabis tem mais de 500 moléculas de interesse. 

O que a gente precisa é de uma regulamentação que não onere o Estado e que permita toda a variedade de medicamentos e produtos à base de cannabis estejam disponíveis. Com isso, profissionais de saúde podem fazer o seu trabalho e familiares também podem fazer as suas descobertas diárias do uso desse remédio. 

Eu tenho falado sempre, não é plutônio, não é veneno da jararaca, é uma planta. Uma planta que poderia estar do lado do alecrim, da carqueja, a gente deve olhar pra ela desse jeito. Não com esse pânico moral que quer colocá-la atrás das grades ou que quer tratar ela apenas como um remédio tarja preta, ela não precisa ser. Para a maior parte dos casos, a fitoterapia da cannabis é mais adequada do que uma estratégia mais sofisticada, mais cara que também deve existir. 

Há oito anos está no mercado um spray à base de maconha, e que continue a ter, ótimo. Mas que isso não seja em detrimento de uma abordagem mais popular e mais adequada às necessidades do povo brasileiro e do nosso sistema de saúde público gratuito e que precisa ser de qualidade.

Se o uso medicinal parece estar avançando no Brasil, o uso recreativo da maconha ainda encontra resistências. Em pesquisa do Datafolha de setembro de 2023, 72% dos brasileiros alegavam ser contra o uso recreativo da planta. Por que o senhor acredita que haja essa diferença? E quais os caminhos para a mudança desse pensamento?

Sidarta Ribeiro Essa pergunta é muito boa e espelha muito das contradições brasileiras. Em torno de três quartos da população acham que maconha para se divertir é ruim, mas praticamente a mesma proporção acredita que maconha como remédio é uma coisa boa.

A gente tem que celebrar que hoje existe uma sólida maioria brasileira a favor do uso terapêutico da cannabis, muito melhor do que 10, 20 anos atrás. Agora, essas mesmas pessoas acham que, em sua maioria, usar cannabis para ouvir música, para namorar, para assistir um filme, para olhar para o teto, é errado. 

Quero deixar bem claro que a gente está falando aqui de uso adulto. É bastante evidente que jovens, a não ser em caso de indicação médica, não devem fazer uso de cannabis. Isso é um ponto pacífico. No caso dos adultos, ao contrário, existem várias evidências de que você pode ajudar bastante em muitos usos psiquiátricos e não psiquiátricos. Aí entra uma outra discussão: aquilo que é recreativo também já não é um tanto terapêutico? Isso tem a ver com aquele pânico moral e com uma certa aversão ao prazer, uma culpa de ser feliz e estar bem. 

E não nos esqueçamos que, quando a maconha foi proibida no Brasil, isso dizia respeito a proibir hábitos de pessoas mais pobres, negras, descendentes de escravizados vindos da África. Havia a ideia de que aquelas pessoas não deviam fumar a liamba ou o pito de Pango, como era chamado na época, porque assim iam trabalhar mais. Porque, se não, poderiam ficar preguiçosas. Preguiçoso para quem? Para o senhor de engenho, para o dono do escravo?

Então existe toda uma ideia de que o uso da maconha deixa as pessoas menos aptas para serem espremidas e utilizadas pelo capitalismo. Uma questão profunda aqui é que a maconha foi perseguida também porque, de certa maneira, permite uma interiorização, permite um devaneio, coloca as pessoas um pouco fora do sistema. E nesses tempos em que o sistema está falindo, que a crise socioambiental é evidente, a cannabis está sendo legalizada em quase todo o planeta rapidamente e isso vem em muito boa hora. 

O Brasil também tem a sua hora, esse momento também tem que chegar. Essa tentativa dos conservadores de demonizar a maconha no Congresso Nacional através dessa lei, não só vai esbarrar na inconstitucionalidade, mas vai bater de frente com a ciência. E, em geral, quem tapa o sol com a peneira, se queima. Eu acho que eles não vão vencer isso, já não venceram na cloroquina, não vão conseguir convencer a população brasileira de que a maconha é do mal. Ela é uma planta que tem muitas utilidades e que tem que sair do local em que ela foi colocada há tantas décadas.

ESTAVA ERRADO: A primeira versão deste texto dizia que Sidarta Ribeiro era vice-diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, mas ele não ocupa mais o cargo. O texto foi corrigido às 17h30 de 12 de março de 2024. 

O Nexo agora tem um canal no WhatsApp!

Você pode se inscrever neste link

Ative as notificações para receber avisos de publicação ao longo do dia.

NEWSLETTER GRATUITA

Nexo | Hoje

Enviada à noite de segunda a sexta-feira com os fatos mais importantes do dia

Este site é protegido por reCAPTCHA e a Política de Privacidade e os Termos de Serviço Google se aplicam.

Gráficos

nos eixos

O melhor em dados e gráficos selecionados por nosso time de infografia para você

Este site é protegido por reCAPTCHA e a Política de Privacidade e os Termos de Serviço Google se aplicam.

Navegue por temas